Contemplando a imagem de um Cristo crucificado, olhar para os céus e sangue jorrando das chagas dos pés e das mãos, fincado naquela parede empoeirada, incrustrada sob arco romanesco, era inescapável deter –me e à minha memória de se deslocar para o andor sobre umbrais nas ruas de terra batida.
Na esquina das ruas Grande e Pau D’Oleo a higidez de minha mãe mirando a dor no rosto de Jesus naquela cruz, protegido por empanados brancos, retornava meu pensamento ao que ela me passara, abraçando-me e aos meus irmãos, entoando cânticos para proteger-nos do humor dos trovões e da lâmina dos raios. Ainda que reinasse no campanário da igreja de que era devota um insolente para-raios exibindo imponência potencialmente arrebatadora.
Não entendia porque a oração pedia proteção às almas que foram para o céu, especialmente as que mais precisavam. Haveriam almas que precisariam de mais e outras de menos.
Dou início ao caminho. A primeira quadra vencida, a segunda, a terceira, quarta, quinta, sexta até a décima quadra. Ando como se passeasse num destes finais de tarde. Difere o peso da jornada.
Ocupo-me a imaginar a caminhada, os 243 mil passos necessários do meu ponto de partida ao ponto de chegada. Em duas horas, da primeira à décima quadra, ainda no perímetro urbano, terei percorrido 8 mil passos, o equivalente a oito quilômetros. Um desempenho, veria mais tarde, pouco expressivo.
Pesa o que levo na mochila. Quatro garrafinhas de água, duas bananas, maçãs, antialérgico e um canivete. Uns três quilos que se transformam em dez em pouco espaço de tempo. Carrego ainda uma imagem de Santa Luzia.
Me apega a lembrança de criança quando o meu pai celebrava todos os anos um terço no dia de Santa Luzia. O dia 13 de dezembro chegava com chuva. E reza na nossa casa. Reza, para nós, significava bolos, sucos, doces. Oportunidade de ver gente nova. E as rezadeiras com seus lenços, quase mantos, a cantar ladainhas como um lamento.
Era um dia de muita festa. Outras casas também tinham terços a Santa Luzia. Vejo hoje que talvez fossem cultos organizados, ainda que aparentassem desarmônicos. Não se cruzavam.
Quando participávamos do terço de nosso pai no entardecer, já havíamos passado por diversos outros durante o dia. Dias de chuva em dezembro. E de muito bolo. Ao chegarem na nossa casa, já tinham, as mesmas rezadeiras, passado pelos terços de Dona Basília, de Domingas de Agenor e de Lôra. Muito bolo de arroz.
Lis não teve cultos à Santa Luzia em nossa casa. A enfermidade a encontrou ainda sem discernimento de tais celebrações.
Nem eu mesmo talvez entenda porque carrego Santa Luzia na mochila. A protetora dos olhos, portadora da luz, acompanha-me como se tivesse aberto as janelas de minha alma para um desconhecido e ininteligível mundo onde a razão não é o moto-contínuo.
Se imaginarmos que Deus é ciumento, como escreveu Moisés nas escrituras, poder-se-ia dizer que, com Santa Luzia na mochila, estaria provocando Senhor do Bonfim.
Santa Luzia me acompanharia por outras dez jornadas, a partir daquele sábado, dia 7 de agosto de 2010, durante dez anos consecutivos. E, por certo me acompanhará até quando Nosso Senhor Bonfim chamar-me.
Aquele sete de agosto principial como os mesmos sete dias da semana, as sete pragas do Egito, as sete cores do arco-íris, os sete pecados capitais, os sete arcanjos, as sete notas musicais ou período de sete em sete anos que as células do nosso corpo se alteram, as sete glândulas ou os nossos sete chacras.
O sete como combinação do três do triângulo (espírito) e do quatro do quadrado (da matéria). Os mesmos sete dias que separavam uma quimioterapia de outra, a que Lis seria submetida por meses. Ou ainda o sétimo dia de agosto quando daria o primeiro passo em direção ao Santuário.
E Santa Luzia como lanterna, não a do "cínico" Diógenes, mas uma lamparina com o pavio mergulhado no querosene, iluminando os dias e noites de nossas vidas.
(trechos do livro Na curvatura da cruz/ainda não publicado, de minha autoria), reminiscências vivificadas nos meus dez anos de romaria entre Palmas e o Santuário de Nosso Senhor do Bonfim/Oxalá, em Natividade)